quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Tempo

Eu vejo as fotos que tiramos, aqueles quadradinhos de vida que escolhemos eternizar. Eu vejo no corpo as cicatrizes de ter sido um bom homem e de ter aproveitado o suficiente da vida. E também vejo as coisas que ficaram espalhadas pela casa, lembrando como chagas cada pequena parte de você que ficou para traz. Abro outra garrafa de cachaça, sabendo bem que aquela foi um presente deixado por você. Na verdade, todas as garrafas da casa foram tocadas por você, pensando bem, sinto seu perfume nelas e mesmo com o enjôo que isso me causa, eu acabo com todas.

Abro meu armário e lá também tem uma camisa minha que você adorava usar. Eu fico espantado com o modo como ela lhe caia tão bem e provocava em mim um desejo nunca controlado. E ali bem no bolso de uma calça, acho uma lista de compras antiga. Você pedia que por favor não comprasse tantas porcarias como da última vez e que nunca esquecesse o seu doce de leite preferido, pois eu sabia bem como você ficava.
Revendo todos estes rastros decido que já não há meio de continuar assim, que preciso fazer algo. Desço até a venda e compro lá algumas garrafas de cerveja e vodka. Pego alguns cubos de gelo, jogo tudo em uma jarra juntamente com algumas latas de energético. Esta bomba vai me deixar no pique para fazer o que for preciso.

Vou até nosso antigo quarto e retiro tudo que me lembrava você. Troco as roupas de cama, juntos seus livros esquecidos na cabeceira e jogo fora seu batom. No banheiro vai pro lixo sua escova de dentes e a de cabelos. Alguns xampus vão embora também. Na cesta de revistas vão ficar só as minhas, apesar de sempre me divertir lendo suas revistas modernosas, principalmente a parte que falava sobre sexo e mulher moderna.

Aqui   na copa é fácil mandar para a doação aquele conjunto de copos que você achava lindo junto com aqueles talheres que eram guardados para ocasiões especiais que nunca ocorriam. As panelas que antes eram mantidas impecavelmente limpas, agora formam uma grande montanha na minha pia, mas nem tudo há de ser perfeito na sua ausência.

As roupas esquecidas por você na lavanderia vão para doação, juntamente com seus livros sobre astrologia, era de aquário e outras baboseiras em que acreditava. Alguns dos seus cd's vão embora também, mas os que acabei aprendendo a gostar contigo, vão ficar. Aproveito o embalo e coloco um deles tocando no último volume. 

Entro no estúdio e logo começo a trabalhar. A jarra esta a cada momento mais vazia e a produção só tende a aumentar. Lembro-me de sair somente para ir ao banheiro ou beliscar alguma coisinha na geladeira. Devo ter ficado neste processo por três dias. Ao sair deixo pronto um novo livro e as ilustrações para outro. Há papel espalhado e muitas manchas de tinta pela minha roupa. Os braços estão rabiscados e com frases e desenhos espalhados por todo o corpo. Sei que você adorava isso, ainda mais quando era em você que eu desenhava, mas desta vez o prazer foi todo meu.

Abro as janelas e uma brisa invade toda a casa. Sinto aos poucos sua aura sendo limpa e em cada canto volto a me enxergar, passo a me reconhecer novamente na casa que antes só pertencia a nós.

Pego as coisas que vão embora e deixo com as irmãs de caridade, dessa forma sua partida vai beneficiar outra pessoa além de mim. Vou até um bar próximo e peço uma cerveja. Vou sorvendo-a pouco a pouco e voltando a respirar os ares da liberdade.  Muitas garotas passam por ali e uma morena fenomenal atrai minha atenção a ponto de fazer com que me levantasse e puxasse papo com ela. A sorte me beneficia e logo na primeira noite que tenho minha vida de volta, sou agraciado com companhia feminina. 

Na manhã do dia seguinte, acordo com a melhor disposição possível, envio meu livro para meu empresário e saio para caminhar e durante todo o caminho não consigo deixar de pensar que já estava mesmo na hora de você ir embora.


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